quarta-feira, abril 09, 2008

Tempo de Despertar


Está rolando uma idéia de reunir a turma do ginásio passados 35 aninhos da formatura e isso me leva a uma reflexão sobre o quanto restou de nossos relacionamentos.
Dos mais chegados, lembro que muitos entravam pelo corredor lateral lá de casa e às vezes anunciavam sua presença apenas gritando meu nome enquanto caminhavam casa adentro, outros tocavam a campainha e não raro saboreavam um lanchinho da mamãe enquanto aguardavam minha volta da rua ou terminar um banho. Emprestavam e pediam emprestado de tudo: desde um caderno para copiar matéria até um brinquedo (lembra do genius?); um disco ou até mesmo a vitrola para tocar o disco emprestado.
Passados 35 anos, ao menos a mim, muito pouco restou daquela intimidade toda, sinto muita falta de contar com um amigo de forma ingênua e franca, de tê-lo como um confidente fiel a quem possa falar minhas angústias e, em troca, pacientemente escutar as suas e já conformo-me reconhecendo que este tempo já passou, não o terei jamais.

Teimosamente tento combater a idéia de que esse encontro será tal qual aquele filme "Tempo de Despertar", sobre a história do Dr. Malcolm Sayer (Robin Willians) que consegue trazer à superfície um grupo de catatônicos sem contudo perpetuar a cura perdendo-os paulatinamente de volta a cada condição.
Longe de mim afirmar que o encontro será um fracasso. Nada disso! Tenho como certo que será muito emocionante, divertido e gostoso. O fluxo das lembranças será intenso: memórias dadas por perdidas serão resgatadas graças ao generoso apoio de algum amigo e informações nebulosas serão depuradas, quem sabe esclarecidas. O que foi motivo de pudor será agora apenas grande bobagem, trataremos com tranqüila liberdade a respeito de travessuras que eram então moeda forte de chantagem como a revelação de quem perdeu aquela figurinha carimbada, do ovo do aniversariante ou ainda de quem colocou a moeda no soquete da lâmpada da sala de aula. É certo também que alguns traremos refratários pudores da época: um apelido, uma paixão ou até algo de que se arrependera proferir, nada que a maturidade do grupo não consiga dissipar aproveitando-se do clima festivo e da evanescência do escasso tempo do encontro.

E daí? O que iremos fazer depois? Marcar um novo encontro em setembro de 2043?
Ou será que, tal qual os pacientes do Dr. Malcolm, retornaremos, uns antes, outros depois, às profundezas do esquecimento do grupo?

À medida que sinto o passar dos anos percebo que necessitamos construir um presente a cada dia para poder saudá-lo como um bom passado, no futuro. Penso ainda que cada grupo de ex-alunos, ao reunir-se em celebração à amizade, deveria aproveitar a oportunidade para gestar uma nova etapa memorável, algo que vá além da efêmera lembrança da comemoração, algo de que possa se orgulhar. E o que é essa coisa que vai além? Essa coisa que vai além manifesta-se de várias formas e hoje observamos grupos que decidem alegrar teatralmente crianças doentes, outros que limpam banheiros públicos e outros ainda que plantam árvores e delas cuidam.
Tudo depende da cara do grupo, de sua afinidade, de sua personalidade intrínseca e cabe ao próprio grupo encontrar qual é a sua, discutindo idéias e colecionando voluntários de tal forma que ninguém venha a sentir-se forçado a participar, isso é ruim demais, tanto para o grupo quanto para o infeliz pseudo-voluntário.

Muitos de nós mal têm tempo para ler essa baboseira toda, outros podem achar politicamente interessante, quem sabe até portadora de dividendos resgatáveis. Tudo é possível diante de uma provocação mas o fato é que não ficaria tranqüilo caso deixasse de manifestar esse pensamento.

Saibam que não ficarei nada desapontado caso essa provocação não provoque ninguém vindo a ser solenemente ignorada por todos. Eu mesmo pensei em arrolhá-lo a mais uma garrafa lançada ao oceano.

"Muitos não puderam quando deviam porque não quiseram quando podiam." (Rabelais)